quinta-feira, 26 de abril de 2012

ROTEIRO DA 19ª AULA


CLÁUSULAS PÉTREAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988*
Em primeiro lugar, convém entender o que significa a voz 'cláusulas pétreas'.
Certamente, as palavras têm vida. Como signos lingüísticos, constituem verdadeiros pedaços de vida encartadas em folhas de papel.
Por isso, cumpre-nos investigar o sentido dos vócabulos, porque eles, se empregados indevidamente, constituem as fontes dos mal entendidos.
O adjetivo pétrea vem de pedra, significando "duro como pedra", "insensível", “petroso".
Trasladando a etimologia da palavra para o campo constitucional, cláusula pétrea é aquela imodificável, irreformável, insuscetível de mudança formal.
Tais cláusulas consignam o núcleo irreformável da Constituição.
Preferimos denominá-las, sem exclusão dos outros termos, de cláusulas de inamovibilidade ou cláusulas inabolíveis, porquanto, perante a observância das mesmas, o legislador reformador não poderá remover ou abolir elenco específico de matérias, devido a uma determinação taxativa do constituinte.
Assim, a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes, os direitos e garantias individuais integram o conteúdo de tais cláusulas.
Com efeito, impende investigar a índole jurídica das cláusulas inabolíveis.
Elas são aquelas que possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia absoluta, como é o caso do § 4º, do art.68, da Constituição Federal.
Absoluta, pois contêm uma força paralisante total de toda a legislação que vier a contrariá-las, quer implícita, quer explicitamente. Dai serem insuscetíveis de reforma (Exemplos: arts.1º, 2º, 54º, I a LXXVII,14,18, 34,VII, a e b,46,§ 1º, 60,§ 4º, da CF de 1988).
Sobremais, são ab-rogantes, desempenhando efeito positivo e negativo.
Têm efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou emenda, sendo intangíveis, logrando incidência imediata.
Possuem, noutro prisma, efeito negativo pela sua força paralisante, total e imediata, vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las. Permanecem imodificáveis, exceto nas hipóteses de revolução, quando ocorre ruptura na ordem jurídica, para se instaurar uma outra.
Como se vê, as cláusulas inabolíveis trazem limites materiais ao poder de reforma constitucional. Alguns desses limites ou vedações são expressos, outros implícitos.
Por isso, perquirir a conveniência de modificar uma Constituição é problema de dupla ordem: um técnico, outro político. Primeiramente técnico, porque qualquer alteração na ordem constitucional, seja ampla (revisão) ou específica (emenda), requer a observância de princípios e pressupostos, os quais estão, irremediavelmente, adstritos ao ordenamento jurídico. Secundariamente político, porque mudar a forma dos preceptivos constitucionais é inserir-se no interesse maior da coletividade -aquele que não diz respeito a uns ou a alguns, mas a todos, indistintamente. É infiltrar-se nas aspirações gerais da sociedade, nas conquistas culturais, admitidas, naquele determinado período histórico, como as mais óbvias e viáveis.
A essa altura já se percebe: não é toda e qualquer matéria que constitui alvo da competência reformadora. De fato, sendo o poder reformador subordinado e instituído pelo instrumento que lhe traçou o perfil e ditou a sua competência, qual seja o poder constituinte originário, nem tudo ele pode, nem todas as manifestações solicitadas poderá satisfazer, nem todas as reclamações formuladas poderão ser acolhidas.
Portanto, do ponto de vista jurídico, é engano acreditar que os depositários do limitado poder reformador, investidos na laboriosa tarefa de modificar a Constituição, a fim de adaptá-la a novas realidades fáticas, tudo podem fazer. Se assim fosse, estariam aptos para exercer o poder constituinte originário, o que lhes permitiria elaborar um novo Texto Supremo e não, simplesmente, alterá-lo.
Logo, mudar uma Constituição, através do recurso instituído da emenda, não é uma competência normal, corriqueira, fácil. Não é algo sub-reptício, servindo para resolver a imensa gama dos problemas concretos.
Ao invés, a ação do poder de reforma constitucional exercita-se num círculo de atividades reguladas e delimitadas.
E deve ser assim, porque alterar a estrutura das normas supremas do Estado não é o mesmo que criar leis ordinárias, resolver processos, realizar atos administrativos.
Trata-se de uma faculdade excepcional, extraordinária!
A Constituição é um meio e nunca um fim em si mesma. Não podemos alimentar a ilusão de que a força operante das normas constitucionais podem evoluir a conjuntura social. A situação é outra: os preceitos constitucionais servem para ordenar: a realidade circundante a depender da interpretação que se lhes atribuam. Todavia, não são modificações formais, inoportunas e inviáveis, com promessas teóricas de fácil equacionamento, que trarão uma suposta 'felicidade nacional'.
Jorge Reinaldo Vanossi transmitiu lição lapidar. Conforme ensinou, dois problemas surgem quando falamos em reforma constitucional: 1º) em que sentido se fará a mudança; e 2º) como o órgão reformador deverá comportar-se perante ela. Com efeito, para se reformular o texto de uma Constituição, urge, a priori, se chegar a um acordo sobre várias questões, as quais se confluem em três itens distintos, porém complementares:
1ª: que é que se quer reformar;
2ª: que é que se deve reformar;
3ª: que é que, presumivelmente, se pode reformar.
Desse modo, não é simples empreitada mudar textos constitucionais. O constituinte derivado brasileiro, de um modo geral, se preocupa em fazer reformas, esquecendo-se do modo como elas devem ser concebidas.
Veja-se, a propósito, a EC n.19/98, que trouxe a reforma administrativa. Mais uma vez, no País da reeleição, os depositários do poder constituinte derivado colocaram o carro na frente dos bois, cometendo equívoco lamentável. Do ângulo financeiro, intentaram apertar o cinto das estatais, o que, a um primeiro momento, parece ser positivo. Acreditaram, contudo, que passando do modelo burocrático de Estado para o gerencial, poderiam equacionar a receita, eliminando as despesas e obtendo resultados. Em tese, a concepção de autonomia gerencial afigura-se perfeita. Do ponto de vista da viabilidade ou realização concreta o problema é outro, porque o instrumento de realização do modelo gerencial é o contrato de gestão. Todavia, este contrato, cujo fundamento é dinamizar as parcerias solidárias, é uma incógnita, desafiando a argúcia dos juristas e a enorme criatividade das entidades administrativas.
A essa altura, cumpre-nos indagar: como o Pretório Excelso tem se posicionado diante das cláusulas inabolíveis da Constituição de 1988?
Na primeira oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal apreciou o problema da inconstitucionalidade de emenda à Constituição, decidiu, unanimemente, que as normas intangíveis do art.68, § 4º, estipulam limitações ao poder reformador. A discussão travada foi quanto à extensão e o conteúdo das chamadas 'cláusulas pétreas'. À época, os Ministros Octávio Gallotti e Paulo Brossard não admitiram expansão, através de ato interpretativo, para evitar a ruptura total da Constituição, eis que os limites à atividade reformadora consignam restrições a mudanças inconstitucionais, senão vejamos:
"EMENTA: Direito Constitucional e Tributário. Ação direta de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de Lei Complementar. IPMF
Imposto Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos de Natureza Financeira - IPMF
Arts. 5º, § 2º; 60, § 4º, incisos I e IV; 150, incisos III, b e VI, a, b, c e d, da Constituição Federal.
I - Uma emenda constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é a de guarda da Constituição (art. 102,I, a, da CF).
II - A Emenda Constitucional n.º 3, de 17/03/93, que, no art. 2º, autorizou a União a instituir o IPMF incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica 'o art. 150, III, b, e IV', da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros):
1º - o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art. 5º, § 2º; art. 60, § 4º, IV; e art. 150,III, b, da Constituição);
2º - o princípio de imunidade tributária recíproca (que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (art. 60, § 4º, I; e art. 150, IV, a, da CF);
3º - a norma que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos (art. 150,III) sobre:
(...)
b) templos de qualquer culto;
c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e
d) livros, jornais, periódicos e papel destinado a sua impressão.
3 - Em conseqüência, é inconstitucional, também, a Lei Complementar 77, de 13/07/93, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, a, b, c e d, da CF (arts. 3º, 4º e 8º do mesmo diploma, LC 77/93).
4 - Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993."(STF ADIn 937-7/DF. ReI.: Min. Sydney Sanches. Tribunal Pleno. Decisão: 15/12/93. DJ 1 de 18/03/94, p. 5.165).
Por outro lado, o Pretório Excelso tem reconhecido os limites materiais do poder de reforma constitucional:
"EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. Proposta de emenda à Constituição Federal. Instituição da pena de morte mediante prévia consulta plebiscitária. Limitação material explícita do poder reformador do Congresso Nacional (art.60, §4º, IV). Inexistência do controle preventivo abstrato (em tese) no direito brasileiro. Ausência de ato normativo. Não-conhecimento da ação direta" (STF ADIn 466-91/DF. Rel. Min. Celso de Mello. Tribunal Pleno. Decisão: 09/04/91. Dj 1 de 10/05/91, p.5.926.).
(...) O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrição de ordem circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF art. 60, § 1º), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar As limitações materiais, definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma, conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo temático acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e mesmo a fiscalização jurisdicional concreta da constitucionalidade" (STF ADIn 466/91/DF. Rel.: Min. Celso de Mello. Tribunal Pleno. Decisão: 09/04/91.DJ 1 de 10/05/9l, p. 5.929).
Senhores magistrados:
O Brasil nunca precisou tanto de seus juízes como agora.
A época que estamos vivendo não é de inspirar otimismo. A fome, a falta de escolas, a crise moral, a degradação da família. Em momentos dessa ordem, a esperança que nunca deserta da vida, faz voltarem-se os olhos para a nova geração de magistrados brasileiros, porque só de sua energia e lucidez poderemos sacar o resgate de nossa sociedade.
Haverá razões que alimentem essa esperança ?
Por um lado, não. Em um País de significativa inflação legislativa e de reformas inoportunas e despropositadas como o Brasil, onde tudo é nivelado por baixo e o respeito ao homem é quase inexistente, os nossos legisladores ainda estão no período da programaticidade dos comandos constitucionais positivados. Fazem promessas, propõem programas de ação futura, erigem normas de eficácia contida ou limitada, sem fornecerem aos Poderes Públicos as condições para as cumprirem plenamente.
Mas, de outra parte, existem aqueles, que, acima de sua condição econômica ou social, se entregam operosamente ao preparo profissional, superando com perseverança as notórias deficiências da Universidade que lhes é oferecida.
São esses os juízes do terceiro milênio, que continuarão a desafiante proposta de explorar as pontecialidades da Constituição, no intuito de mantê-la entre as regras vivas!
*Extraído da Revista IN VERBIS, publicada pelo Instituto dos Magistrados do Brasil, n.º 15.


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