CLÁUSULAS PÉTREAS NA CONSTITUIÇÃO DE 1988*
Em
primeiro lugar, convém entender o que significa a voz 'cláusulas pétreas'.
Certamente,
as palavras têm vida. Como signos lingüísticos, constituem verdadeiros pedaços
de vida encartadas em folhas de papel.
Por
isso, cumpre-nos investigar o sentido dos vócabulos, porque eles, se empregados
indevidamente, constituem as fontes dos mal entendidos.
O
adjetivo pétrea vem de pedra, significando "duro como pedra",
"insensível", “petroso".
Trasladando
a etimologia da palavra para o campo constitucional, cláusula pétrea é aquela
imodificável, irreformável, insuscetível de mudança formal.
Tais
cláusulas consignam o núcleo irreformável da Constituição.
Preferimos
denominá-las, sem exclusão dos outros termos, de cláusulas de inamovibilidade
ou cláusulas inabolíveis, porquanto, perante a observância das mesmas, o
legislador reformador não poderá remover ou abolir elenco específico de
matérias, devido a uma determinação taxativa do constituinte.
Assim,
a forma federativa de Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico, a
separação dos poderes, os direitos e garantias individuais integram o conteúdo
de tais cláusulas.
Com
efeito, impende investigar a índole jurídica das cláusulas inabolíveis.
Elas
são aquelas que possuem uma supereficácia, ou seja, uma eficácia absoluta, como
é o caso do § 4º, do art.68, da Constituição Federal.
Absoluta,
pois contêm uma força paralisante total de toda a legislação que vier a
contrariá-las, quer implícita, quer explicitamente. Dai serem insuscetíveis de
reforma (Exemplos: arts.1º, 2º, 54º, I a LXXVII,14,18, 34,VII, a e b,46,§ 1º,
60,§ 4º, da CF de 1988).
Sobremais,
são ab-rogantes, desempenhando efeito positivo e negativo.
Têm
efeito positivo, pois não podem ser alteradas através do processo de revisão ou
emenda, sendo intangíveis, logrando incidência imediata.
Possuem,
noutro prisma, efeito negativo pela sua força paralisante, total e imediata,
vedando qualquer lei que pretenda contrariá-las. Permanecem imodificáveis,
exceto nas hipóteses de revolução, quando ocorre ruptura na ordem jurídica,
para se instaurar uma outra.
Como
se vê, as cláusulas inabolíveis trazem limites materiais ao poder de reforma
constitucional. Alguns desses limites ou vedações são expressos, outros implícitos.
Por
isso, perquirir a conveniência de modificar uma Constituição é problema de
dupla ordem: um técnico, outro político. Primeiramente técnico, porque qualquer
alteração na ordem constitucional, seja ampla (revisão) ou específica (emenda),
requer a observância de princípios e pressupostos, os quais estão,
irremediavelmente, adstritos ao ordenamento jurídico. Secundariamente político,
porque mudar a forma dos preceptivos constitucionais é inserir-se no interesse
maior da coletividade -aquele que não diz respeito a uns ou a alguns, mas a
todos, indistintamente. É infiltrar-se nas aspirações gerais da sociedade, nas
conquistas culturais, admitidas, naquele determinado período histórico, como as
mais óbvias e viáveis.
A
essa altura já se percebe: não é toda e qualquer matéria que constitui alvo da
competência reformadora. De fato, sendo o poder reformador subordinado e
instituído pelo instrumento que lhe traçou o perfil e ditou a sua competência,
qual seja o poder constituinte originário, nem tudo ele pode, nem todas as
manifestações solicitadas poderá satisfazer, nem todas as reclamações
formuladas poderão ser acolhidas.
Portanto,
do ponto de vista jurídico, é engano acreditar que os depositários do limitado
poder reformador, investidos na laboriosa tarefa de modificar a Constituição, a
fim de adaptá-la a novas realidades fáticas, tudo podem fazer. Se assim fosse,
estariam aptos para exercer o poder constituinte originário, o que lhes
permitiria elaborar um novo Texto Supremo e não, simplesmente, alterá-lo.
Logo,
mudar uma Constituição, através do recurso instituído da emenda, não é uma
competência normal, corriqueira, fácil. Não é algo sub-reptício, servindo para
resolver a imensa gama dos problemas concretos.
Ao
invés, a ação do poder de reforma constitucional exercita-se num círculo de
atividades reguladas e delimitadas.
E
deve ser assim, porque alterar a estrutura das normas supremas do Estado não é
o mesmo que criar leis ordinárias, resolver processos, realizar atos
administrativos.
Trata-se
de uma faculdade excepcional, extraordinária!
A
Constituição é um meio e nunca um fim em si mesma. Não podemos alimentar a
ilusão de que a força operante das normas constitucionais podem evoluir a
conjuntura social. A situação é outra: os preceitos constitucionais servem para
ordenar: a realidade circundante a depender da interpretação que se lhes
atribuam. Todavia, não são modificações formais, inoportunas e inviáveis, com
promessas teóricas de fácil equacionamento, que trarão uma suposta 'felicidade
nacional'.
Jorge
Reinaldo Vanossi transmitiu lição lapidar. Conforme ensinou, dois problemas
surgem quando falamos em reforma constitucional: 1º) em que sentido se fará a
mudança; e 2º) como o órgão reformador deverá comportar-se perante ela. Com
efeito, para se reformular o texto de uma Constituição, urge, a priori, se
chegar a um acordo sobre várias questões, as quais se confluem em três itens
distintos, porém complementares:
1ª:
que é que se quer reformar;
2ª:
que é que se deve reformar;
3ª:
que é que, presumivelmente, se pode reformar.
Desse
modo, não é simples empreitada mudar textos constitucionais. O constituinte
derivado brasileiro, de um modo geral, se preocupa em fazer reformas,
esquecendo-se do modo como elas devem ser concebidas.
Veja-se,
a propósito, a EC n.19/98, que trouxe a reforma administrativa. Mais uma vez,
no País da reeleição, os depositários do poder constituinte derivado colocaram
o carro na frente dos bois, cometendo equívoco lamentável. Do ângulo
financeiro, intentaram apertar o cinto das estatais, o que, a um primeiro
momento, parece ser positivo. Acreditaram, contudo, que passando do modelo
burocrático de Estado para o gerencial, poderiam equacionar a receita,
eliminando as despesas e obtendo resultados. Em tese, a concepção de autonomia
gerencial afigura-se perfeita. Do ponto de vista da viabilidade ou realização
concreta o problema é outro, porque o instrumento de realização do modelo
gerencial é o contrato de gestão. Todavia, este contrato, cujo fundamento é
dinamizar as parcerias solidárias, é uma incógnita, desafiando a argúcia dos
juristas e a enorme criatividade das entidades administrativas.
A
essa altura, cumpre-nos indagar: como o Pretório Excelso tem se posicionado
diante das cláusulas inabolíveis da Constituição de 1988?
Na
primeira oportunidade em que o Supremo Tribunal Federal apreciou o problema da
inconstitucionalidade de emenda à Constituição, decidiu, unanimemente, que as
normas intangíveis do art.68, § 4º, estipulam limitações ao poder reformador. A
discussão travada foi quanto à extensão e o conteúdo das chamadas 'cláusulas
pétreas'. À época, os Ministros Octávio Gallotti e Paulo Brossard não admitiram
expansão, através de ato interpretativo, para evitar a ruptura total da
Constituição, eis que os limites à atividade reformadora consignam restrições a
mudanças inconstitucionais, senão vejamos:
"EMENTA:
Direito Constitucional e Tributário. Ação direta de inconstitucionalidade de
Emenda Constitucional e de Lei Complementar. IPMF
Imposto
Provisório sobre a Movimentação ou a Transmissão de Valores e de Créditos de
Natureza Financeira - IPMF
Arts.
5º, § 2º; 60, § 4º, incisos I e IV; 150, incisos III, b e VI, a, b, c e d, da
Constituição Federal.
I
- Uma emenda constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada,
incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada
inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é a de
guarda da Constituição (art. 102,I, a, da CF).
II
- A Emenda Constitucional n.º 3, de 17/03/93, que, no art. 2º, autorizou a
União a instituir o IPMF incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor,
no § 2º desse dispositivo, que, quanto a tal tributo, não se aplica 'o art.
150, III, b, e IV', da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes
princípios e normas imutáveis (somente eles, não outros):
1º
- o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (art.
5º, § 2º; art. 60, § 4º, IV; e art. 150,III, b, da Constituição);
2º
- o princípio de imunidade tributária recíproca (que veda à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos sobre o
patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação
(art. 60, § 4º, I; e art. 150, IV, a, da CF);
3º
- a norma que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos
(art. 150,III) sobre:
(...)
b)
templos de qualquer culto;
c)
patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações,
das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de
assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei; e
d)
livros, jornais, periódicos e papel destinado a sua impressão.
3
- Em conseqüência, é inconstitucional, também, a Lei Complementar 77, de
13/07/93, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do
tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas
no art. 150, VI, a, b, c e d, da CF (arts. 3º, 4º e 8º do mesmo diploma, LC
77/93).
4
- Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais
fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos
os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar que suspendera a
cobrança do tributo no ano de 1993."(STF ADIn 937-7/DF. ReI.: Min. Sydney
Sanches. Tribunal Pleno. Decisão: 15/12/93. DJ 1 de 18/03/94, p. 5.165).
Por
outro lado, o Pretório Excelso tem reconhecido os limites materiais do poder de
reforma constitucional:
"EMENTA:
Ação direta de inconstitucionalidade. Proposta de emenda à Constituição
Federal. Instituição da pena de morte mediante prévia consulta plebiscitária.
Limitação material explícita do poder reformador do Congresso Nacional (art.60,
§4º, IV). Inexistência do controle preventivo abstrato (em tese) no direito
brasileiro. Ausência de ato normativo. Não-conhecimento da ação direta"
(STF ADIn 466-91/DF. Rel. Min. Celso de Mello. Tribunal Pleno. Decisão:
09/04/91. Dj 1 de 10/05/91, p.5.926.).
(...)
O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no
desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão
do poder constituinte originário que, a par de restrição de ordem
circunstancial, inibitórias do poder reformador (CF art. 60, § 1º),
identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e
imune à ação revisora da instituição parlamentar As limitações materiais,
definidas no § 4º do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente
sobre o poder de reforma, conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe
o exercício nos pontos ali discriminados. A irreformabilidade desse núcleo
temático acaso desrespeitada, pode legitimar o controle normativo abstrato, e
mesmo a fiscalização jurisdicional concreta da constitucionalidade" (STF
ADIn 466/91/DF. Rel.: Min. Celso de Mello. Tribunal Pleno. Decisão: 09/04/91.DJ
1 de 10/05/9l, p. 5.929).
Senhores
magistrados:
O
Brasil nunca precisou tanto de seus juízes como agora.
A
época que estamos vivendo não é de inspirar otimismo. A fome, a falta de
escolas, a crise moral, a degradação da família. Em momentos dessa ordem, a
esperança que nunca deserta da vida, faz voltarem-se os olhos para a nova
geração de magistrados brasileiros, porque só de sua energia e lucidez
poderemos sacar o resgate de nossa sociedade.
Haverá
razões que alimentem essa esperança ?
Por
um lado, não. Em um País de significativa inflação legislativa e de reformas
inoportunas e despropositadas como o Brasil, onde tudo é nivelado por baixo e o
respeito ao homem é quase inexistente, os nossos legisladores ainda estão no
período da programaticidade dos comandos constitucionais positivados. Fazem
promessas, propõem programas de ação futura, erigem normas de eficácia contida
ou limitada, sem fornecerem aos Poderes Públicos as condições para as cumprirem
plenamente.
Mas,
de outra parte, existem aqueles, que, acima de sua condição econômica ou
social, se entregam operosamente ao preparo profissional, superando com
perseverança as notórias deficiências da Universidade que lhes é oferecida.
São
esses os juízes do terceiro milênio, que continuarão a desafiante proposta de
explorar as pontecialidades da Constituição, no intuito de mantê-la entre as
regras vivas!
*Extraído da Revista IN VERBIS, publicada pelo
Instituto dos Magistrados do Brasil, n.º 15.
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